sábado, 16 de abril de 2011

GENÁRIO PEDREIRO - Publicado no Jornal da Cidade (Aracaju) em 15/04/2011



GENÁRIO DAS FLECHAS – Uma memória brilhante


Vou começar dizendo que  Batanga, Diego e  o ferreiro Zé de Tula  (que tem sua tenda na rua Antônio José dos Santos, uma das saídas para as Flechas, em Itabaiana) são os responsáveis.  Batanga por ter filmado algumas recitações; Diego por ter feito (sem cobrar um tostão) uma cópia em cds para mim e, finalmente, Zé de Tula, filho de Deolindo (casado com Cristina de Mengo, prima de minha mãe) e de uma morena bonita chamada Tula...  Este Zé,   na feira de Itabaiana  (era um sábado no começo de dezembro),  quando parei na sua banca de foices e lâminas para forrageiras, foi logo falando:
- Sabe Genário, seu primo?  Você precisa ver! Ele foi ao Faustão ou  ao Sílvio Santos, um deles!  Os jurados de boca aberta, a plateia suspensa e o Brasil de respiração presa.  Só Genário recitando seus versos e suas listas de sabedoria, descarregando sua memória de computador.   Aqui nos comícios, quando Luciano deixava que ele falasse, até os baderneiros da oposição batiam palmas. Vou mandar Diego copiar as fitas. Venha sábado pegar. Sem falta!

Genário (Agenário Pereira de Carvalho, 76 anos) é um dos filhos de Sizino e de Lourdes, nascido nas Flechas de Itabaiana.  Sizino (seu pai)  era filho de Candinho Pereira (do povo dos Caga-Rancho, dos Calumbys de Frei Paulo) e de Conceicão, uma das filhas de Nicolau de Norato, que era o pai  também de mãe Céu (Maria do Céu Monteiro), que é minha avó materna. E Lourdes, a mãe  de Genário?  Pertencia a outros troncos (dos ferreiras), que peço permissão para não falar. Árvores genealógicas são sempre confusas!
Sobre Sizino, (o pai de Genário), sabe-se que deixou a esposa criar sozinha os filhos e foi para São Paulo, onde continuou ignorado e mais explorado ainda. Voltou doente, ficando a zanzar entre suas rimas, uma garrafa de pinga e a morte inexorável.   Um homem como ele não poderia suportar lúcido, o mundo injusto e tudo mais. Analfabeto, pobre, sem plateia justa, mesmo tendo uma mente rara. Escutava pai Totonho ler um livro de cordel, e saia pelas bodegas recitando de cor, inteiro, sem perder uma vírgula. Ao morrer (conta a lenda), sabia mais de cem obras, que recitava, até mesclando umas com outras, alternando versos de obras diferentes, trocando os personagens pelos moradores da vizinhança, bastava alguém pedir.

Esqueci completamente de Zé de Tula e só retornei à Itabaiana depois de três meses. Ao correr a feira, como sempre faço, e ao encostar na banca de verduras de Arnaldo de tio Zé,  ele me disse que Zé Tula queria falar comigo, urgente. Corri lá! O ferreiro estava indignado:
- Você demorou mais do que devia!  Esqueceu-se do nosso trato, né? Passe lá em casa no final da tarde!  Você vai gostar,  ainda mais  agora que o passarinho parou de cantar!
Retornei para  Aracaju sem a encomenda. Lembrei-me em casa, à noite. Telefonei para minha irmã Lourdinha, que mora perto, para que a pegasse.
Apenas no fim da semana pude escutar os cds (ainda bem que não eram fitas!) e  retornei, às carreiras, à Itabaiana.  Não podia esperar, tinha que falar com Genário, de que eu nem sabia o endereço. Como eu nunca soubera de sua espantosa e brilhante memória.  Um pressentimento macabro, se bem que fugaz, me tingia o céu. Pessoas como ele são frágeis. Se eu quisesse desfrutar de sua genialidade, não podia perder tempo.
Encontrei  Zé de Tula na tenda, consertando um ferro de marcar gado. Pedi-lhe que me levasse logo, eu precisava falar com Genário.  O ferreiro parou o serviço e me olhou espantado:
- Gostou tanto assim das fitas, foi?
- Gostei demais!  E aí? Pode me levar lá? Pra que lado é que fica a casa dele?
- Calma, Tonho! Genário agora está no cemitério de Itabaiana. Tem um mês que morreu. Eu falei pra você na feira, só se você não entendeu.
E vendo a minha cara de extrema aflição, concluiu:
 – Desculpe!

Voltei para Aracaju como um cavalo trôpego, arrastando os bicos dos cascos no asfalto. Desorientado. Quase não chego!
Em casa, liguei o computador e fiquei o resto do dia e a noite inteira revendo Genário recitar suas obras, na ponta da língua e, ao final de cada uma, dar aquele sorriso concho de quem tem consciência do seu valor.   Afoguei-me  na teima com Messias Peixoto sobre os itens de seu supermercado,  no teste de admissão de ajudante de pedreiro, no estoque da loja de material de construção de Mateus, nos povoados de Itabaiana...  E em muito mais!
E descobri que os seus filmes estão no ‘Youtube’ (outra gentileza de Batanga), basta ir  ao Google e buscar “Genário Pedreiro” (pedreiro foi sua real profissão) para  conhecer o que deixei de contar, “mas só uma parte pequena, viu?”.  Muitas fitas se perderam, inclusive as do  tal programa de auditório.

Genário das Flechas (Pedreiro, de Lourdes, de Sizino, meu primo de terceiro grau), que vi poucas vezes na vida,  é agora meu ídolo. Símbolo de meu povo e de minha terra.  Um homem raro, uma mente (memória?) brilhante,  que só conheci graças aos três lá de cima (Batanga, Diego e Zé de Tula).

Genário Pedreiro
por que foi morrer
assim tão ligeiro?
Deixasse primeiro
eu te conhecer!
  
Antônio Francisco de Jesus (Antônio Saracura)
Escritor itabaianense, autor de “Os Tabaréus do Sítio Saracura”,
“Meninos que não queriam ser Padres”...